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sexta-feira, 20 de abril de 2012

Depoimento de Damaris Morais

Acompanhe a seguir um lindo e emocionante depoimento de Damaris.


Meu nome é Damaris, tenho 47 anos e vivo no coração do Brasil.
Moro na cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás, cidade com mais de um milhão de habitantes, e mais de mil ostomizados. Muito linda minha cidade.
Era uma vez... uma garota de 20 anos. É faz um tempão já.
Bem... tive meu primeiro sintoma de retocolite aos 20 anos. Coisa à toa, sangue nas fezes, sem diarréia, sem dor. Raro foi ter o diagnóstico imediato: retocolite. 3 semanas depois não tinha mais sintomas, 6 meses depois tive alta. Só não sabia que eu não estava curada, mas somente em remissão. O que foi bom, porque passei 7 anos sem sintomas e, portanto, sem preocupação. Quando engravidei comecei a sangrar de novo. Usei pouca medicação por causa da gravidez, mas fiquei bem. Tive uma gravidez perfeita, um filho perfeito. Quando ele estava com 9 meses e eu já havia voltado a trabalhar, tive minha primeira crise grave. Mas não aceitei fazer o tratamento indicado porque não queria deixar de amamentar. Só que muitas vezes amamentava meu filho no vaso sanitário. Fui piorando. 1 ano depois eu já tinha perdido peso demais, estava fraca demais e o médico me disse sério que era melhor que meu filho tomasse mamadeira da minha mão do que ficar sem mãe para dar peito ou mamadeira. Então comecei o tratamento e melhorei. Por pouco tempo, logo tive outra crise grave. O médico me falou sobre ostomia. Não quis nem encompridar a conversa. É temporário, ele insistiu. Vou sarar, eu respondi. E eu tentei. Tentei tudo que ele mandou, tudo que me ensinaram, todas as medicinas: alopatia, homeopatia, fitoterapia, terapia, um tipo de hipnose, psiquiatria. O psiquiatra disse que eu não tinha nenhum sintoma que ele pudesse tratar: não era depressiva, não sofria de ansiedade, não tinha problemas para dormir... a não ser a diarréia é claro. Mas essa, não era ele que tratava. Eu trabalhava 7, 8 meses durante as melhoras e tinha outra crise que me obrigava a entrar de licença.
Lembro-me de um feriado de carnaval. Eu adoro viajar, mesmo doente eu viajava o máximo que podia. Meu médico sempre dizia: mas e se você sangrar durante a viagem? Eu replicava: melhor me divertindo do que esperando por isso. Hoje eu sei que ele não falava de simples sangramento retal, mas de algo mais grave, que graças a Deus nunca aconteceu. Nesse carnaval eu estava muito mal. Tão mal que meu marido viajou para casa de parentes com meu filho que tinha pouco mais de três anos e eu tive que ficar. Ficar numa cama bem perto do banheiro. Naquele sábado de carnaval, pela primeira vez senti realmente inveja de alguém. Eu vi na televisão várias pessoas pulando carnaval e eu invejei a saúde delas. Eu não queria pular carnaval, eu só queria cuidar do meu filho, e nem isso eu conseguia mais. Depois melhorei. Prestei concurso para professora, passei, estava numa fase ótima. Trabalhava em duas escolas, fui aos EUA fazer um curso rápido. 1 ano depois tive outra crise grave. Não pude entrar de licença no serviço público porque ainda estava em estágio probatório, perdi meu emprego e ainda fui chamada a dar explicações, eu e meu médico, sobre como uma pessoa com uma doença crônica assume um cargo público. Eu naquela época não sabia lutar pelos meus direitos, não tinha conhecido a Cândida Carvalheira ainda, e pedi exoneração.
Novamente o médico me falou sobre ostomia, novamente eu prometi melhorar. Tentei, gastei dinheiro que não tínhamos nesses anos de tratamento, mas as crises se tornaram mais longas que as remissões. Passei a dormir no banheiro, num edredom, pois eu tinha mais diarréia à noite, não valia a pena voltar para cama.
Houve um dia muito triste para mim, foi quando eu estava passeando perto de casa com meu filho e vi que ia ter diarréia. Estava tão acostumada com isso que entrei na primeira lojinha que vi e pedi para usar o banheiro. Eu ia a qualquer banheiro: posto de gasolina, oficina mecânica, feminino, masculino, limpo, sujo, mas esse tinha algo diferente: tinha um espelho grande quebrado num canto em frente ao vaso. Meu filho como de costume entrava comigo, eu nunca o deixava do lado de fora com medo de que ele se afastasse ou alguém o levasse. Vi meu filho no reflexo do espelho, me mostrando um bichinho de plástico. Daí vi o meu reflexo. Fiquei chocada, foi a primeira vez que vi meu rosto se contorcer de dor, todas as veias do meu rosto ficaram inchadas quando veio a cólica, a cólica que vinha antes do sangramento. Era esse rosto que meu filho via todos os dias, várias vezes por dia. Eu precisava fazer alguma coisa. Mas usar bolsa? Eu não conseguia imaginar que teria vida usando bolsa de colostomia e eu pensava, por que tanto sofrimento? Eu não sabia ainda, mas estava em treinamento. Estava sendo treinada para entender a dor dos outros, de uma forma bem eficaz: com a minha dor.
Em 2000 piorei muito, fui internada, fiz mais uma de várias colonoscopias, a pior de toda a minha vida. Eu estava muito fraca, pressão sempre baixa, não podia tomar nada forte para dor. Quando o exame terminou eu disse para minha irmã: diga ao meu médico que ele pode tirar meu intestino todinho e jogar no lixo, porque eu nunca mais na minha vida faço outra colono. Mas a essa altura meu médico já tinha decidido pela cirurgia, já tinha ligado para meu marido e para minha mãe. Não tinha mais jeito. Quando eu pensei que decidi, já havia sido decidido. Só que aí eu não tinha mais condições físicas para ser operada: coagulação, pressão, tudo alterado. O médico decidiu esperar, fui para casa.   Tomei muitas injeções de vitamina k. Já não saia da cama nem para ir ao banheiro, usava fralda, não conseguia dormir de dor, não enxergava direito, não conseguia me concentrar em nada, nem TV, nem livro ou revista. Meu pensamento ficou errático. Emagreci tanto que até o timbre da minha voz mudou, pesava 33 quilos nessa época.  Eu não tinha lugar. Finalmente o médico disse que íamos fazer a cirurgia, que correu maravilhosamente bem. Minha ostomia era perfeita e linda, mas eu não achava nada disso na época...
Em 5 dias saí do hospital! Tudo correndo bem com a cirurgia. Tinha muita cólica quando comia, não queria comer. Vomitava muito. Chorava todos os dias, no final do dia. Entrei em depressão. Uma estomaterapeuta foi à minha casa me ensinar a trocar a bolsa, estava tudo certo. Eu só chorava. Um psicólogo foi me tratar em casa, não adiantou. Eu disse para minha irmã: olha, eu estou muito chata, nem eu estou me agüentando, eu não sou assim, me leve a um psiquiatra, preciso de remédio. E assim foi. Ela me levou a um psiquiatra de quem graças a Deus eu não lembro nome e ele me disse: você usa bolsa de colostomia? Tem razão para estar deprimida, vai usar antidepressivos o resto da vida! Tenho que admitir que apesar de ser um ignorante a respeito de ostomia, ele acertou com o remédio, em 10 dias eu era outra pessoa, ou melhor, eu voltava a ser eu mesma. Os comprimidos acabaram, eu nunca mais vi esse médico e nesses dias tinha acontecido uma coisa muito boa na minha vida, aliás várias:
Eu não sentia mais dor. Eu não tinha mais diarréia. Eu podia comer chocolate. Eu podia tomar leite. Eu dormia a noite inteira. E eu fui à Associação de Ostomizados da minha cidade. Lá, as coisas realmente começaram a se encaixar. A enfermeira que me recebeu foi logo dizendo: que tal vestir uma roupa mais bonitinha? Eu estava de camisetão e a bolsa pendurada por cima de uma calça baixa. E eu os vi: tantos ostomizados e ostomizadas. Jovens, velhos, crianças. Rindo, trabalhando, trocando idéias sobre como disfarçar a bolsa, sobre como namorar de bolsa, sobre viver. Eu tinha encontrado dezenas de respostas, para perguntas que já havia feito e para muitas outras que eu nem sabia que faria. Eu queria aprender tudo, sempre gostei de aprender e como sou professora, não sei aprender sem ensinar. Assim, 6 meses depois comecei a trabalhar como voluntária na associação, um ano depois fizemos a Cartilha da Mulher, que já está na 5 ª edição impressa e disponível na internet. Comecei a participar de congressos mundiais de ostomizados, representando o Brasil, falar Inglês me ajudou muito nisso.
Também trabalho com adolescentes na minha igreja, atividade que me mantém atualizada e em forma, haja fôlego para acompanhar essa turma! Faço palestras em faculdades e cursos técnicos de enfermagem sobre o que o ostomizado espera desse profissional. Dou aula de Inglês Instrumental, mas prefiro mesmo é ensinar um ostomizados a conviver com a bolsa. Envolvi-me com a luta pelos direitos dos ostomizados, colaborando com a Associação Brasileira de Ostomizados - ABRASO, e desde então faço parte da diretoria da minha associação estadual. Há quase 10 anos decidi ser visitadora por causa de um comentário que a esposa de um associado fez para mim. Ela disse: se meu marido tivesse conhecido vocês há um ano, talvez não estivesse morrendo. Eu perguntei: por quê? Ela respondeu que quando o médico disse ao marido dela que ele teria uma colostomia definitiva por causa de um câncer retal ele simplesmente sumiu do hospital porque disse que preferia morrer a usar uma bolsa de fezes pregada na barriga. Só voltou ao hospital um ano depois quando já era tarde. Eu pensei, talvez haja como alcançar os futuros ostomizados, ou os novatos logo depois da cirurgia para fazer orientação e encaminhá-los para a associação. Fiz o curso no Hospital do Câncer da minha cidade porque é onde consigo visitar o maior número de ostomizados em menos tempo. Há quase dois anos a equipe de cirurgia do aparelho digestivo deste hospital me convidou para fazer a visita médica com eles. Lá eles me indicam os ostomizados e eu já fico sabendo pela apresentação do caso se a ostomia será temporária, se é um paciente terminal ou inoperável, enfim, volto depois para minha visita já com várias informações. Aí converso com o paciente sobre o que realmente interessa: a bolsa.
Das dezenas de pacientes que atendi lá, de duas jamais me esquecerei: uma foi uma senhora muito simples, moradora da zona rural, que na mesa de cirurgia disse para o médico que não ia fazer essa operação de por bolsinha de jeito nenhum. Desceram com ela do centro cirúrgico e me chamaram. Conversamos pouco, eu perguntei por que ela não queria colocar a bolsa, ela disse que isso era tudo muito complicado. Disse a ela que eu já usava a bolsa há um tempão. Ela quis ver. Não entendeu. Fui ao banheiro com ela e fiz a higiene da bolsa para que ela visse, mostrei o ostoma. Ela me disse então: “É só isso fia? Então vamo fazê essa tar de operação logo, acho que dô conta de lida com essa borsa, ocê disse que eu ganho as borsa do governo?” Deu tudo certo na cirurgia dela.
Outra de quem não me esqueço, pois estava muito triste, era muito vaidosa, achava que nunca mais ia poder usar uma roupa bonita ou se despir para o marido. Ao final da visita, já sorrindo fez uma ligação na minha frente para a filha que estava em casa e disse assim: “Filha, vá até o armário da cozinha, embaixo da pia, pegue o vidro de veneno de rato e jogue fora. Não vou mais precisar beber isso, quero viver”.
No início da visita não digo que sou ostomizada, só ouço o que o paciente acha dessa situação. Depois conto, e geralmente mostro a bolsa, porque eles não acreditam. Aí sim, eles estão prontos para me ouvir. Porque não há profissional, por mais que saiba, por mais que se importe com um paciente, que tenha a autoridade para falar sobre o que é usar uma bolsa, como outro ostomizado tem. E eles sabem disso. Pra mim eles não podem dizer assim: “você diz que é fácil porque não é com você, queria ver se fosse com você...”, que é o que eles às vezes dizem para os profissionais que querem fazê-los acreditar que podem ter uma vida normal. Eu não digo a eles que podem ter uma vida normal. Eu mostro a eles que eu tenho uma vida normal. Tenho uma necessidade especial, luto por ela, não me envergonho dela. E sou feliz. Sou abençoada.  Quando Deus permitiu que eu sobrevivesse, que me tornasse uma ostomizada, tinha um propósito para isso. Cada um tem que descobrir o propósito que Deus tem para sua vida e que com certeza não é ficar se lamentando. Quando me perguntam como eu disfarço a bolsa, eu ensino. Quando me perguntam sobre a minha vida sexual eu digo que melhorou muito, eu vivia doente, tinha que interromper uma relação sexual para correr para o banheiro. Hoje vou ao banheiro antes de fazer amor e, boa noite, até amanhã! Claro que a aceitação imediata do meu marido à minha condição me ajudou imensamente, na verdade ele aceitou minha ostomia antes de mim.
Minha paixão é trabalhar como visitadora, mas não adianta trabalhar com os ostomizados se eles não têm acesso às bolsas, se as cirurgias não são bem feitas, se o preconceito ainda existe. Então há trabalho em todas essas frentes: cobrando do governo leis que nos amparem, defendendo nossos direitos já adquiridos, conscientizando os cirurgiões da importância de uma cirurgia bem feita, mostrando nossa cara e às vezes nossa ostomia para a sociedade. O preconceito que eu tive por tantos anos era fruto da minha ignorância sobre o que é essa cirurgia.
Atualmente posso reverter minha ostomia, na verdade quando fiz 7 anos de ostomizada o médico me disse, agora dá para fechar. Eu disse: fechar? E se não der certo? E se eu ficar incontinente? E se eu precisar ir ao banheiro 4, 5 vezes por dia? Com pressa? Como vou pedalar com minha turma por 4 horas? Ninguém vai me esperar ir ao banheiro, eu prefiro minha bolsinha. Ele disse: isso tudo pode acontecer mesmo, ou não. Ele não insiste comigo, sabe que sofro hoje em dia da síndrome do excesso de informação: já vi ostomias demais, complicações demais. E para comemorar que estava ótima, eu decidi fazer uma tatuagem na minha cicatriz, que ficou linda..
O tatuador disse assim: talvez não dê para cobrir sua cicatriz totalmente. Eu disse a ele, não tem importância, eu me orgulho muito dessa cicatriz, me foi muito útil, só quero enfeitá-la. E assim ele fez, dizendo que nunca tinha ouvindo ninguém dizer que se orgulhava de uma cicatriz. Mas essa é especial, é um recado de Deus no meu abdômen, dizendo assim: - Seja feliz minha filha, e também: - Eu tenho muito trabalho para você!
Hoje, 12 anos depois da ostomia, estou cada dia mais forte e mais saudável. Certa de que o propósito de Deus para minha vida era que eu fosse uma ostomizada e através dessa experiência ajudasse muitas pessoas.


“Tudo quanto fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens” (apóstolo Paulo)

7 comentários:

  1. Eu adoro esta garota.
    Quando eu crescer quero ser como ela. kkkk
    Engraçado como nossas historias se confundem em muitos pontos.
    Minha querida amiga Damaris, quando será sua próxima visita a esta terra giratória e louca,SP.
    Beijo

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  2. Damaris,
    O máximo seu depoimento, me identifico muuuito com seu perfil... essa gana de mostrar as pessoas que podemos viver normalmente nessa condição, que podemos ser atraentes, e ter a possibilidade de ajudar as pessoas então... isso é maravilhoso... sempre pensei que seria maravilhoso poder visitar recém ostomizados... poder ajudar a se adaptarem com a nova condição. E tbm já fui "liberada" a mais de um ano pra fazer a reconstruão, masssss, assim como vc, não tenho "coragem"... pq vivo tão bem, tão bem, que tenho medo de estragar!!! rsrsrs
    Bjsss a todas e é sempre um prazer poder compartilhar nossas experiências!!! amo todasss!!!

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  3. Semiramis Conceição Rodrigues28 de junho de 2015 às 00:25

    Damaris,
    Foi maravilhoso ter conhecido você. Penso que Deus permitiu estarmos ostomizados para que a ostomia seja um "memorial" para jamais esquecermos que Deus tem usado a medicina para prolongar um pouco mais a nossa vida aqui na Terra. Provando ao mundo a grandeza de Deus que nos transmite vida e força para ajudarmos os que estão necessitados e carentes de fé para vencerem os desafios da vida.

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  4. História linda... Tenho bolsa de ileostomia e queria dormir sem precisar acordar 5 ou 6 vezes na noite. Tenho há um ano, e vou fazer exames para fazer a reversão. Mais até lá, parece uma eternidade. Meu único problema é dormir direto... Acaba comigo.

    Bjos

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  5. Linda história... Tenho ileostomia a um ano, e vou fazer exames para reverter, mais parece uma eternidade. Queria alguma dica pra conseguir dormir em paz, pq acordo umas 5 ou 6 vezes na noite isso acaba comigo no outro dia. Fiz 4 cirurgias, deu hemorragia e quase morri, mais graças a Deus estou aqui, escrevendo, a sr, uma pessoa experiente pode me dar algum Conselho. Desde já agradeço, PS. Pré ISO um pouco da sua fé também. :(

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  6. Damiris, aqui com olhos marejados ao ler teu depoimento. Tenho uma irmã de 36 anos ostomizada ha poucos meses, devido cânce retal. Ela aceitou tudo bem. Mas minha visita aqui eh para pedir autorizaçao tua, atraves de documento, caso vc concorde com o q irei pedir. Estou montando um projeto para entrwgar ao prefeito de minha cidade, para criar grupos de apoio para ostomizados. Tudo que aprendemos, colocar, limpar...bolsa, foi pela internet. Foi stressantw nao ter apoio. Entao gostaria de saber se posso baixar tua cartilha e usar como material de apoio, para distribuir gratuitamente aos 96 ostomizados de minha cidade, tentando um patrocinio com prefeitura e empresarios daqui, para imprimir o teu livro. Me responsabilizo sempre em mandar noticias e fotos depois que o projeto seja aceito. Meu Face eh Manna Gaucha. Meu email eh managaucha7@gmail.com. Desde ja agredeco pela tua atencao. Mareci Silva - Bagé/RS

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