Acompanhe a seguir um lindo e emocionante depoimento de Damaris.
Meu
nome é Damaris, tenho 47 anos e vivo no coração do Brasil.
Moro
na cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás, cidade com mais de um milhão
de habitantes, e mais de mil ostomizados. Muito linda minha cidade.
Era
uma vez... uma garota de 20 anos. É faz um tempão já.
Bem...
tive meu primeiro sintoma de retocolite aos 20 anos. Coisa à toa, sangue nas
fezes, sem diarréia, sem dor. Raro foi ter o diagnóstico imediato: retocolite.
3 semanas depois não tinha mais sintomas, 6 meses depois tive alta. Só não sabia
que eu não estava curada, mas somente em remissão. O que foi bom, porque passei 7 anos sem
sintomas e, portanto, sem preocupação. Quando engravidei comecei a sangrar de
novo. Usei pouca medicação por causa da gravidez, mas fiquei bem. Tive uma
gravidez perfeita, um filho perfeito. Quando ele estava com 9 meses e eu já
havia voltado a trabalhar, tive minha primeira crise grave. Mas não aceitei
fazer o tratamento indicado porque não queria deixar de amamentar. Só que
muitas vezes amamentava meu filho no vaso sanitário. Fui piorando. 1 ano depois
eu já tinha perdido peso demais, estava fraca demais e o médico me disse sério
que era melhor que meu filho tomasse mamadeira da minha mão do que ficar sem
mãe para dar peito ou mamadeira. Então comecei o tratamento e melhorei. Por
pouco tempo, logo tive outra crise grave. O médico me falou sobre ostomia. Não
quis nem encompridar a conversa. É temporário, ele insistiu. Vou sarar, eu
respondi. E eu tentei. Tentei tudo que ele mandou, tudo que me ensinaram, todas
as medicinas: alopatia, homeopatia, fitoterapia, terapia, um tipo de hipnose,
psiquiatria. O psiquiatra disse que eu não tinha nenhum sintoma que ele pudesse
tratar: não era depressiva, não sofria de ansiedade, não tinha problemas para dormir...
a não ser a diarréia é claro. Mas essa, não era ele que tratava. Eu trabalhava
7, 8 meses durante as melhoras e tinha outra crise que me obrigava a entrar de
licença.
Lembro-me
de um feriado de carnaval. Eu adoro viajar, mesmo doente eu viajava o máximo
que podia. Meu médico sempre dizia: mas e se você sangrar durante a viagem? Eu replicava:
melhor me divertindo do que esperando por isso. Hoje eu sei que ele não falava
de simples sangramento retal, mas de algo mais grave, que graças a Deus nunca
aconteceu. Nesse carnaval eu estava muito mal. Tão mal que meu marido viajou
para casa de parentes com meu filho que tinha pouco mais de três anos e eu tive
que ficar. Ficar numa cama bem perto do banheiro. Naquele sábado de carnaval,
pela primeira vez senti realmente inveja de alguém. Eu vi na televisão várias
pessoas pulando carnaval e eu invejei a saúde delas. Eu não queria pular
carnaval, eu só queria cuidar do meu filho, e nem isso eu conseguia mais.
Depois melhorei. Prestei concurso para professora, passei, estava numa fase
ótima. Trabalhava em duas escolas, fui aos EUA fazer um curso rápido. 1 ano
depois tive outra crise grave. Não pude entrar de licença no serviço público
porque ainda estava em estágio probatório, perdi meu emprego e ainda fui
chamada a dar explicações, eu e meu médico, sobre como uma pessoa com uma
doença crônica assume um cargo público. Eu naquela época não sabia lutar pelos
meus direitos, não tinha conhecido a Cândida Carvalheira ainda, e pedi
exoneração.
Novamente
o médico me falou sobre ostomia, novamente eu prometi melhorar. Tentei, gastei dinheiro
que não tínhamos nesses anos de tratamento, mas as crises se tornaram mais
longas que as remissões. Passei a dormir no banheiro, num edredom, pois eu
tinha mais diarréia à noite, não valia a pena voltar para cama.
Houve
um dia muito triste para mim, foi quando eu estava passeando perto de casa com
meu filho e vi que ia ter diarréia. Estava tão acostumada com isso que entrei
na primeira lojinha que vi e pedi para usar o banheiro. Eu ia a qualquer
banheiro: posto de gasolina, oficina mecânica, feminino, masculino, limpo, sujo,
mas esse tinha algo diferente: tinha um espelho grande quebrado num canto em
frente ao vaso. Meu filho como de costume entrava comigo, eu nunca o deixava do
lado de fora com medo de que ele se afastasse ou alguém o levasse. Vi meu filho
no reflexo do espelho, me mostrando um bichinho de plástico. Daí vi o meu
reflexo. Fiquei chocada, foi a primeira vez que vi meu rosto se contorcer de
dor, todas as veias do meu rosto ficaram inchadas quando veio a cólica, a
cólica que vinha antes do sangramento. Era esse rosto que meu filho via todos
os dias, várias vezes por dia. Eu precisava fazer alguma coisa. Mas usar bolsa?
Eu não conseguia imaginar que teria vida usando bolsa de colostomia e eu pensava,
por que tanto sofrimento? Eu não sabia ainda, mas estava em treinamento. Estava
sendo treinada para entender a dor dos outros, de uma forma bem eficaz: com a
minha dor.
Em
2000 piorei muito, fui internada, fiz mais uma de várias colonoscopias, a pior de
toda a minha vida. Eu estava muito fraca, pressão sempre baixa, não podia tomar
nada forte para dor. Quando o exame terminou eu disse para minha irmã: diga ao
meu médico que ele pode tirar meu intestino todinho e jogar no lixo, porque eu
nunca mais na minha vida faço outra colono. Mas a essa altura meu médico já
tinha decidido pela cirurgia, já tinha ligado para meu marido e para minha mãe.
Não tinha mais jeito. Quando eu pensei que decidi, já havia sido decidido. Só
que aí eu não tinha mais condições físicas para ser operada: coagulação,
pressão, tudo alterado. O médico decidiu esperar, fui para casa. Tomei muitas injeções de vitamina k. Já não
saia da cama nem para ir ao banheiro, usava fralda, não conseguia dormir de
dor, não enxergava direito, não conseguia me concentrar em nada, nem TV, nem
livro ou revista. Meu pensamento ficou errático. Emagreci tanto que até o
timbre da minha voz mudou, pesava 33 quilos nessa época. Eu não tinha lugar. Finalmente o médico disse
que íamos fazer a cirurgia, que correu maravilhosamente bem. Minha ostomia era
perfeita e linda, mas eu não achava nada disso na época...
Em
5 dias saí do hospital! Tudo correndo bem com a cirurgia. Tinha muita cólica
quando comia, não queria comer. Vomitava muito. Chorava todos os dias, no final
do dia. Entrei em
depressão. Uma estomaterapeuta foi à minha casa me ensinar a
trocar a bolsa, estava tudo certo. Eu só chorava. Um psicólogo foi me tratar em
casa, não adiantou. Eu disse para minha irmã: olha, eu estou muito chata, nem
eu estou me agüentando, eu não sou assim, me leve a um psiquiatra, preciso de
remédio. E assim foi. Ela me levou a um psiquiatra de quem graças a Deus eu não
lembro nome e ele me disse: você usa bolsa de colostomia? Tem razão para estar
deprimida, vai usar antidepressivos o resto da vida! Tenho que admitir que
apesar de ser um ignorante a respeito de ostomia, ele acertou com o remédio, em
10 dias eu era outra pessoa, ou melhor, eu voltava a ser eu mesma. Os
comprimidos acabaram, eu nunca mais vi esse médico e nesses dias tinha
acontecido uma coisa muito boa na minha vida, aliás várias:
Eu
não sentia mais dor. Eu não tinha mais diarréia. Eu podia comer chocolate. Eu
podia tomar leite. Eu dormia a noite inteira. E eu fui à Associação de Ostomizados
da minha cidade. Lá, as coisas realmente começaram a se encaixar. A enfermeira
que me recebeu foi logo dizendo: que tal vestir uma roupa mais bonitinha? Eu
estava de camisetão e a bolsa pendurada por cima de uma calça baixa. E eu os
vi: tantos ostomizados e ostomizadas. Jovens, velhos, crianças. Rindo,
trabalhando, trocando idéias sobre como disfarçar a bolsa, sobre como namorar
de bolsa, sobre viver. Eu tinha encontrado dezenas de respostas, para perguntas
que já havia feito e para muitas outras que eu nem sabia que faria. Eu queria
aprender tudo, sempre gostei de aprender e como sou professora, não sei
aprender sem ensinar. Assim, 6 meses depois comecei a trabalhar como voluntária
na associação, um ano depois fizemos a Cartilha da Mulher, que já está na 5 ª
edição impressa e disponível na internet. Comecei a participar de congressos
mundiais de ostomizados, representando o Brasil, falar Inglês me ajudou muito
nisso.
Também
trabalho com adolescentes na minha igreja, atividade que me mantém atualizada e
em forma, haja fôlego para acompanhar essa turma! Faço palestras em faculdades
e cursos técnicos de enfermagem sobre o que o ostomizado espera desse
profissional. Dou aula de Inglês Instrumental, mas prefiro mesmo é ensinar um
ostomizados a conviver com a bolsa. Envolvi-me com a luta pelos direitos dos
ostomizados, colaborando com a Associação Brasileira de Ostomizados - ABRASO, e
desde então faço parte da diretoria da minha associação estadual. Há quase 10
anos decidi ser visitadora por causa de um comentário que a esposa de um associado
fez para mim. Ela disse: se meu marido tivesse conhecido vocês há um ano,
talvez não estivesse morrendo. Eu perguntei: por quê? Ela respondeu que quando
o médico disse ao marido dela que ele teria uma colostomia definitiva por causa
de um câncer retal ele simplesmente sumiu do hospital porque disse que preferia
morrer a usar uma bolsa de fezes pregada na barriga. Só voltou ao hospital um
ano depois quando já era tarde. Eu pensei, talvez haja como alcançar os futuros
ostomizados, ou os novatos logo depois da cirurgia para fazer orientação e
encaminhá-los para a associação. Fiz o curso no Hospital do Câncer da minha
cidade porque é onde consigo visitar o maior número de ostomizados em menos
tempo. Há quase dois anos a equipe de cirurgia do aparelho digestivo deste
hospital me convidou para fazer a visita médica com eles. Lá eles me indicam os
ostomizados e eu já fico sabendo pela apresentação do caso se a ostomia será
temporária, se é um paciente terminal ou inoperável, enfim, volto depois para
minha visita já com várias informações. Aí converso com o paciente sobre o que
realmente interessa: a bolsa.
Das
dezenas de pacientes que atendi lá, de duas jamais me esquecerei: uma foi uma
senhora muito simples, moradora da zona rural, que na mesa de cirurgia disse
para o médico que não ia fazer essa operação de por bolsinha de jeito nenhum.
Desceram com ela do centro cirúrgico e me chamaram. Conversamos pouco, eu
perguntei por que ela não queria colocar a bolsa, ela disse que isso era tudo
muito complicado. Disse a ela que eu já usava a bolsa há um tempão. Ela quis
ver. Não entendeu. Fui ao banheiro com ela e fiz a higiene da bolsa para que
ela visse, mostrei o ostoma. Ela me disse então: “É só isso fia? Então vamo fazê essa tar de operação logo, acho que dô
conta de lida com essa borsa, ocê disse que eu ganho as borsa do governo?”
Deu tudo certo na cirurgia dela.
Outra
de quem não me esqueço, pois estava muito triste, era muito vaidosa, achava que
nunca mais ia poder usar uma roupa bonita ou se despir para o marido. Ao final
da visita, já sorrindo fez uma ligação na minha frente para a filha que estava
em casa e disse assim: “Filha, vá até o armário da cozinha, embaixo da pia,
pegue o vidro de veneno de rato e jogue fora. Não vou mais precisar beber isso,
quero viver”.
No
início da visita não digo que sou ostomizada, só ouço o que o paciente acha dessa
situação. Depois conto, e geralmente mostro a bolsa, porque eles não acreditam.
Aí sim, eles estão prontos para me ouvir. Porque não há profissional, por mais
que saiba, por mais que se importe com um paciente, que tenha a autoridade para
falar sobre o que é usar uma bolsa, como outro ostomizado tem. E eles sabem
disso. Pra mim eles não podem dizer assim: “você diz que é fácil porque não é
com você, queria ver se fosse com você...”, que é o que eles às vezes dizem
para os profissionais que querem fazê-los acreditar que podem ter uma vida
normal. Eu não digo a eles que podem ter uma vida normal. Eu mostro a eles que
eu tenho uma vida normal. Tenho uma necessidade especial, luto por ela, não me
envergonho dela. E sou feliz. Sou abençoada.
Quando Deus permitiu que eu sobrevivesse, que me tornasse uma
ostomizada, tinha um propósito para isso. Cada um tem que descobrir o propósito
que Deus tem para sua vida e que com certeza não é ficar se lamentando. Quando
me perguntam como eu disfarço a bolsa, eu ensino. Quando me perguntam sobre a
minha vida sexual eu digo que melhorou muito, eu vivia doente, tinha que
interromper uma relação sexual para correr para o banheiro. Hoje vou ao
banheiro antes de fazer amor e, boa noite, até amanhã! Claro que a aceitação
imediata do meu marido à minha condição me ajudou imensamente, na verdade ele
aceitou minha ostomia antes de mim.
Minha
paixão é trabalhar como visitadora, mas não adianta trabalhar com os
ostomizados se eles não têm acesso às bolsas, se as cirurgias não são bem
feitas, se o preconceito ainda existe. Então há trabalho em todas essas
frentes: cobrando do governo leis que nos amparem, defendendo nossos direitos
já adquiridos, conscientizando os cirurgiões da importância de uma cirurgia bem
feita, mostrando nossa cara e às vezes nossa ostomia para a sociedade. O
preconceito que eu tive por tantos anos era fruto da minha ignorância sobre o
que é essa cirurgia.
Atualmente
posso reverter minha ostomia, na verdade quando fiz 7 anos de ostomizada o
médico me disse, agora dá para fechar. Eu disse: fechar? E se não der certo? E
se eu ficar incontinente? E se eu precisar ir ao banheiro 4, 5 vezes por dia?
Com pressa? Como vou pedalar com minha turma por 4 horas? Ninguém vai me
esperar ir ao banheiro, eu prefiro minha bolsinha. Ele disse: isso tudo pode
acontecer mesmo, ou não. Ele não insiste comigo, sabe que sofro hoje em dia da
síndrome do excesso de informação: já vi ostomias demais, complicações demais.
E para comemorar que estava ótima, eu decidi fazer uma tatuagem na minha
cicatriz, que ficou linda..
O
tatuador disse assim: talvez não dê para cobrir sua cicatriz totalmente. Eu
disse a ele, não tem importância, eu me orgulho muito dessa cicatriz, me foi
muito útil, só quero enfeitá-la. E assim ele fez, dizendo que nunca tinha
ouvindo ninguém dizer que se orgulhava de uma cicatriz. Mas essa é especial, é
um recado de Deus no meu abdômen, dizendo assim: - Seja feliz minha filha, e
também: - Eu tenho muito trabalho para você!
Hoje,
12 anos depois da ostomia, estou cada dia mais forte e mais saudável. Certa de
que o propósito de Deus para minha vida era que eu fosse uma ostomizada e
através dessa experiência ajudasse muitas pessoas.
“Tudo quanto fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não
para homens” (apóstolo Paulo)